#ContaLáDaVila

 O Concurso Literário #ContaLáDaVila foi realizado como contraproposta social deste projeto no período de Abril a Maio de 2021, De contos a poesias, fictícia ou não-fictícia  independente de gênero: Drama, romance, Comédia, suspense e outros deste que sejam ambientadas  na Vila Sorriso, apelido dado históricamente para Icoaraci. O Concurso recebeu 7 inscrições e premiou os 3 contos mais votados pela equipe técnica, receberam os respectivos prêmios de R$500,00 , R$300,00 e R$200,00 e devido reconhecimento neste site.


Confira os três contos abaixo na íntegra:


ANACRONISMO HÍBRIDO-  Por Carolina Dias

 

Talvez a única coisa que do tempo possuo conhecimento é a sua luxação no cosmo, por exemplo, quando nasci na Vila descobri com os anos um propósito: ser matéria fluída e volátil. Constitui nela a minha subjetividade, por ordem aquém a vida, descobrindo que o local emana minhas vestes interiores, vestes sem tecido, que formam sobre a minha pele, roupas sem forma regular. Vestimentas voláteis que se moldam, no e pelo corpo. Gosto de pensar no meu neste como uma brisa que contempla o fim de tarde na Orla, lugar este que fica de frente para o sol, sobre o céu e as águas, porque sei que, assim como a brisa, o tempo irá levar a minha matéria de subjetividade e então me concluirei no tatear do porto da Vila, ou da vida. Sou admiradora da formação da palavra Icoara (Água) Ci (Mãe), resultando em uma junção, cuja origem Tupi Guarani, forma a Mãe das Águas que tanto me conjuga e atravessa. Lembremos que a conjugação jaz na mobilidade e o atravessar é o híbrido na conjugação. Acho, às vezes, um verbo espontâneo na classe das passagens, ou melhor, dizendo, um parêntese aberto no antebraço do meu braço.  Aquela, são as mudanças que ocorrem nas subidas e descidas de uma lombada de uma das ruas do Distrito, e esta, posso dizer que sou eu no decorrer do passar sobre as lombadas.

 

Lembro-me da primeira vez que passei por um obstáculo da vida: a decisão. Foi bem brusca a forma que fui abatida, pois nessa fase da infância, a criança que eu era andava de bicicleta se sentindo independente no pedalar sobre as pedras. Residente do Recanto Verde, eu era a filha desastrada de meu pai, pra qual ele dizia "Nunca desce do alto da ladeira" da alameda onde morávamos. Então, um dia peguei a bicicleta sem freio do meu primo, esperei meu pai entrar em casa, subi no início da rua e desci ladeira abaixo. Foi incrível, todavia, quando já estava no ponto baixo da alameda, de formato semelhante a uma tesoura aberta, veio um homem maduro do qual eu encarei em uma linguagem que dizia "Mano, desvia de mim. Vira para o lado! Se eu vira eu vou cair!". Esperei até o ultimo instante, mas o homem não desviou. Quando cheguei bem próxima dele joguei a bicicleta para o lado esquerdo fortemente e cai em um buraco, me alagando com a água escura dele. Pensei naquele instante em quão bom seria se tivesse escutado meu pai e acreditei que a minha condição não podia piorar, logo, a bicicleta caiu sobre o meu corpo. Não demorou até meu pai puxar a bicicletinha e eu de dentro vala. E dali íamos andando pela rua, ele rindo do meu estado e eu chorando com a dor dos ralados. Depois aprendi que os ralados cicatrizam e as cicatrizes dos ralados devem ser estórias da minha natureza.

É obvio que não posso esquecer das quedas e subidas da adolescência.  Vou citar aqui uma vez em que fui ao parque, que se encontrava, durante a festividade do Círio de Nossa Senhora das Graças, na Praça Matriz, acompanhada de alguns amigos. Bem alegre por sinal, pois chegando ao local, tomamos conhecimento da promoção ofertada pela direção do parque, na qual se trocava um ingresso por um quilo de alimento não perecível, com o objetivo de destina-los para doações. Em seguida, fomos ao Líder, compramos arroz, macarrão e leite. Voltamos para o parque logo depois.  Friso que meus amigos formavam casais, todavia, eu e o Coruja sobrávamos nesse contexto e embora eu o conhecesse há bastante tempo, por meio de amigos em comuns da igreja, foi naquela noite que ele virou um amigo meu. 

 

Fomos, antes de ir a algum brinquedo, primeiramente a sorveteria, olhei o cardápio da parede e sorri porque tinha um dinheiro a mais para poder comprar um Milk-Shake que tanto, durante várias idas a lanchonetes na vida, eu degustava o suposto sabor na mente. Lembrara dos círios da infância, nos quais pedia ao meu pai, que tanto fazia o esforço de me levar ao local, mais brinquedos do que coisas de comer, como o passarinho de madeira que, com o meu impulso sobre ele, batia as asas no chão. Já crescida, estava ali satisfeita ao sacar o meu próprio dinheiro do bolso e pagar a atendente. Aquele foi o primeiro dia que lambi o gosto que é acariciar a liberdade que eu mesma me proporcionei o gosto de provar. Tive um Olimpo em minhas mãos cujos deuses que nele habitavam resultavam ao todo na minha esperança de ser livre todo dia. Foi neste instante que ofusquei a minha cólera externa para dar margem ao constante devir de meu olhar para dentro. Tomei consciência de que internamente a minha alma é liberta e inócua somente para comigo, segundo os meus pressupostos libertários, mas externamente esta é perigosa em matéria tépida de "libertação". Ser mulher, mesmo que ainda não se considere uma, é, nesses momentos, ressoar uma voz de essência plural fundida sobre uma garganta singular.

Entre conversas e risadas, ao longo da noite, agarrei no braço do Coruja e decidimos, junto aos outros amigos, subir no brinquedo que mais amedrontava dentre todos os demais. Nomeávamos ele de "Temi Case", não sei o porquê, mas o apelido caiu super bem. Entramos logo na fila, não demorou muito até chegar nossa vez e sentarmos na cadeira do brinquedo. Olhei para ele rindo e quando subimos fechei os olhos. O Temi Case cujo formato se parecia com uma tesoura de pontas para cima no ar, se entrecruzou, virando-nos de cabeça para baixo, fazendo o meu estômago remexer. Giramos mais duas vezes e na quarta, abri os olhos e dei de cara com um breu enorme, de tão perto, que me cegou pra qualquer outra vista no instante. Fui descendo novamente e vi o alto da Igreja Matriz e disse para o Coruja que só podia ter morrido e já estar no céu. Ele me riu um riso singelo enquanto me mandava não fechar mais os olhos. Assim o fiz. Para minha maior sorte, ou contemplação, vi além do breu e do teto paroquial, as estrelas. Até hoje não sei bem explicar a fotografia do indizível. Porém, quando olho para um céu estrelado tenho a certeza de não ser a única a fazer isso e tem sido este o maior combustível da minha esperança cósmica no inenarrável. 

 

Por fim, é claro, se me vale mencionar as subidas e descidas da vida adulta, que são várias, acho que posso resumi-las exemplificando uma viagem de ônibus, na qual escolhemos as últimas cadeiras, onde, em certo momento, o motorista faz um movimento brusco e em consequência, subimos e descemos no acento. Eu particularmente adoro as viagens de ônibus de Icoaraci para o centro comercial e vice e versa, mesmo que isso me tenha resultado em viagens diárias e exaustivas pela cidade, eu adoro a experiência. Vivi tantas situações obrigatórias na vida que me ensinaram, com a distância e o tempo defronte as janelas, ou amassada entre a multidão, que a relatividade na galhofa da vida, da pressa e das circunstâncias, é mutável.

 

Lembro de uma noite de um domingo, onde peguei o Almirante Barroso com uma amiga e demos uma viagem de quase duas horas, quando voltamos demos outra ainda mais demorada. Ao longo desta ultima entrou um pai com seu filho pedindo ajuda, nem eu nem ela tínhamos dinheiro trocado que não fossemos precisar ao longo da semana. Ficamos olhando para a criança até que minha amiga me disse "Ei, eu tenho uma maça aqui na minha bolsa". Já era noite e estávamos perto da agulha, portanto, ela chamou rapidamente o pai e ele pegou a fruta de suas mãos enquanto lhe proferia um obrigado. Descemos na parada em frente o Abelardo, local onde minha mãe me concedeu a vida. E nela aqui estou graças a ela. Sabe? É triste vê que a vida e as circunstâncias são mutáveis, mas não posso ser pragmática ao não procurar a relatividade, vejo essa busca como a equivalência de ser anacrônica no hibridismo de viver com o pé descalço em um moinho atual e empoeirado. Eu guardo essas fotografias de subidas e descidas em uma gaveta da memória, um pouco empoeirada também, mas jamais enquadrada ao cogito. É que tenho os olhos naturais da Vila, possuo um pé na vivência e outro na captura prolixa da fala inesgotável.

 

 

O MISTÉRIO DO CASARÃO-  Por José Croelhas


Waldyr, dedicado aluno de Letras e Artes da UFPA, todas as noites dependia do "cristo", último ônibus da monopolista Autoviação Icoaraciense, para chegar em casa, no simpático bairro da Ponta Grossa. 
Era 1980, uma fria noite de março, inverno amazônico no auge. Ele e a esposa perderam a condução de meia noite, acabando "no mato sem cachorro" naquela soturna parada do mercado de São Braz.
Chuviscava e o casal via-se na possibilidade de ter que dormir na praça, fazendo companhia para os "cheira-cola" de plantão, até porque os táxis recusavam corridas para áreas distantes, face assaltos em série que vinham acontecendo na periferia de Belém.
Sem esperar muito, decidiram arriscar uma caminhada até o Terminal Rodoviário na esperança de encontrar algum conhecido que estivesse indo para Icoaraci.
Assim que saíram, um carro branco, dirigido por um homem jovem, de bigode, vestindo branco e com sorriso no rosto, parou do lado deles:
- Perderam o "cristo", companheiros? - indagou ao casal.
- Sim, sim... Chegamos aqui já passava de meia noite, o ônibus de Icoaraci já tinha passado, que droga! - lamentou o assustado Waldyr.
- Bem, se quiserem carona amiga entrem aqui, eu moro lá na São Roque, levo vocês... - ofereceu.
Aliviado, o casal imediatamente se abrigou nos bancos do belo carro do bom moço e, logo mergulhando num acalorado papo, até esqueceram de perguntar seu nome.
A conversa seguiu fluente por toda a então desértica rodovia Augusto Montenegro.
Waldyr discorreu sobre o tema que sempre lhe apaixonou: Objetos voadores não identificados, os tais OVNI, contando vários casos que jurava serem verdade. Também ouviu histórias que o rapaz vivenciara com seus pais, um fazendeiro e uma professora, em Belém e num chalé espaçoso e antigo, quase chegando à rua Siqueira Mendes.
Já beirava uma e meia da manhã quando chegaram à Vila Sorriso. O rapaz gentilmente foi deixar o casal na porta de sua residência, na travessa Andradas. O casal, claro, não parou de agradecer pelo especial favor de um ser tão educado e gentil.
Por muitos meses, Waldyr alimentou o desejo de procurar o rapaz que lhe deu carona lá pelo casarão da São Roque, às proximidades do chalé Tavares Cardoso, mas sempre acontecia algo para atrapalhar a visita.
Certa noite, finalmente, a notícia de que um navio pegava fogo em frente de Icoaraci levou metade da cidade pra assistir o sinistro, inclusive aquele casal. No retorno, Waldyr e a esposa decidiram parar no casarão da São Roque e procurar pelo jovem da inesquecível carona amiga.
Depois de muito baterem, foram atendidos por uma senhora bem idosa, cabelos arrumados, muito lúcida e simpática.
Waldyr relatou o acontecido há cerca de quatro meses, fazendo com que a idosa, estupefata e nervosa, respiração acelerada, explicasse:
- Senhores, essa casa pertenceu a uma professora e seu marido, que criava bois no Marajó. Ele morreu faz quase 40 anos, desgostoso com a repentina morte do único filho num acidente com o carro deles.
A professora Lourdes, pra quem sempre trabalhei, nunca mais deu notícia. Sumiu!
A idosa, então, apontou na parede um quadro com a foto do rapaz.
- A senhora sabe que cor era o carro do acidente? - perguntou Waldyr, impressionado com aquele mistério.
- Branco! - respondeu a idosa.
Não havia dúvida, aquela fotografia era sim do amigo que lhes deu a carona...

 

DONA ELZA-  Por Marcele Nascimento

 

Existem histórias que transitam entre a fantasia da memória e o real de como cada período reflete em nossa vivência. Acredito que as memórias reais mais fantasiosas e banhadas de contextos e criatividade são as memórias de infância. Nessa linha tênue e ao mesmo tempo que dialoga, trago aqui algumas memórias da minha infância. Cresci e morei durante 12 anos na mesma casa em Icoaraci, na rua Manoel barata, mais conhecida como 2° rua, entre Travessa Berredos e Travessa Andradas número 1449 B de bola. Minha casa sempre tinha cores diferentes e vibrantes das quais várias pessoas paravam para perguntar o nome. A casa tinha dois andares, e no segundo andar tinha uma pequena varanda, que quando a mangueira em frente não estava majestosamente cheia de folhas, eu podia ver o movimento da rua e as tramas da vizinhança. Cresci nesta rua rodeada de mulheres das quais antes de seus nomes, eu aprendi que, sempre havia de colocar o pronome “Dona”. Costume colonial de usar esse pronome de tratamento, mas que como quase sempre, a cultura popular ressignifica e eu também. Então eu cresci rodeada de mulheres Donas, Donas de si, Donas do seu caminho, mesmo com os percalços e dificuldades, que como já esperado, infelizmente, acorreram. Mulheres mães solos criando filhos e netos. Tinha a Dona Rita, minha avó paterna, mulher animada e de bordões calorosos e picantes, me contou muitas histórias assustadoras de homem-porco e homens-lobisomens, acho que homens sempre tinham essa representação na sua psiquê, ela também cultivava ervas no quintal das nossas casas e enterrava nossos animais de estimação, pós matéria viva, nos pés de uma erva-cidreira imensa. Ali comecei a aprender sobre vida-morte-vida. Dona Olívia, uma professora, nunca soube de que, aposentada que pelos fins de tarde se sentava em uma cadeira de balanço vermelha, era bem calada e tinha uma feição amigável. Dona Nazaré, que sempre fazia os melhores mingaus e brincadeiras de festa junina, servia a uma igreja do bairro e plantava flores muito estonteantes para distribuir pelo bairro em forma de buquê vivo no círio do distrito. Tinha a Dona Beth, essa vivia sozinha, senhora esguia, de cabelo comprido, liso e preto e vivia em uma casa de entrada pequena e simples que eu imaginava ter cumprimento do quarteirão, não a conhecia muito. E havia a Dona Elza, a moradora mais antiga da rua, morava em uma casa literalmente bem em frente a minha, em um ângulo simétrico à minha visão da varanda de casa. Dona Elza era uma mulher negra, de cabelos grisalhos sempre presos em um coque, pouco falante e parecia que sempre usava roupas de dormir. Ela morava em uma casa de madeira, envergada para o lado esquerdo e com uma pintura branca que descascava mais ao tempo que chegava. A casa, segundo contavam, tinha um quintal imenso, e eu nunca soube o conteúdo de sua casa, quintal, pensamento e história de vida. Todas as crianças, incluindo eu, tinham medo da Dona Elza. Contavam rumores dos quais nunca soube como chegaram aos meus ouvidos de que ela era uma bruxa, perigosa e maldosa. Que ela tinha poderes sobrenaturais e que se tu olhasse nos olhos dela algo de ruim poderia vir a te ocorrer. Inúmeras vezes eu acordava e olhava pela janela, e lá estava Dona Elza, olhando através de sua janela, ou seria uma fenda da sua realidade. Em alguns momentos ela me via e eu gelada, medrosa e imaginativa fugia para algum lugar que eu me sentisse segura em casa. Quando eu cresci uns centímetros e vivi mais alguns anos, Dona Elza viveu o seu último ciclo. No local de sua casa foi construído um conjunto de Kitnets.Por alguns anos após isso, minha visão da frente de casa ficou estranha. Não havia mais mistério. Havia ali uma família convencional e festeira. Após alguns anos, devaneio que 9 anos, após a minha mudança da casa natal, em um lapso inesperado do subconsciente emerge a lembrança na minha memória da Dona Elza. Senti que a sua memória foi soterrada e em cima empilhados tijolos, novos móveis e esquecimentos. Esquecimento de quem um dia habitou, muito antes, aquele local. Olhos que viram coisas que jamais se documentaram. Então busquei saber no boca-a-boca um pouco mais sobre Dona Elza. Consegui poucas memórias. No entanto, descobri que ela não morava só, morava com muitos filhos e alguns netos, e enfim consegui dar corpo em um hiato nessa memória do que ou quem habitava aquela residência misteriosa. Curioso que não me lembre, como a minha memória foi seletiva, curiosa a mente humana. Também descobri que Dona Elza na verdade era umbandista e uma grande benzedeira. Curioso que eu nunca soube, como a memória coletiva foi seletiva, curiosa a sociedade racista. Ainda sinto que a memória da Dona Elza, ao menos para mim e para as pessoas que cresceram comigo naquela rua, está turva. Agora um pouco menos turva vejo que ela foi uma mulher negra e afrodescendente foi demonizada, aqui mais um fruto da colonização. Após isso comecei a me lembrar que na verdade a maioria dessas Donas eram erveiras. Lembrei dos banhos de cheiro que tomei, dos remédios de plantas que a minha avó cuidadosamente passou pela minha pele. O quanto essas mulheres mantinham viva a tradição popular de festejos, brincadeiras, cosme e damião. Mas ainda não me lembro da presença da Dona Elza, acredito que ela nunca tenha estado lá. Mas sigo buscando memórias dela.

Projeto selecionado pelo edital de Artes Visuais- Lei Aldir Blanc Pará 2020



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